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domingo, 30 de outubro de 2011

MEMÓRIAS DO ESQUECIMENTO_ FLÁVIO TAVARES






ADVERTÊNCIA À NOVA EDIÇÃO

Publicadas originalmente no final de 1999, no 30º aniversário do seqüestro do embaixador dos EUA (eixo da narração ou seu ponto de partida e chegada), estas “Memórias do Esquecimento” reaparecem revisadas e ampliadas neste 2005, a caminho de 2006, num momento em que mencionar os tempos da ditadura militar já não espanta nem atemoriza.

Sem nada cortar ou podar das edições antigas,acrescentei aqui novos episódios, situações ou protagonistas. Tento, assim, delinear com mais clareza os corredores escuros de uma época em que tudo foi sombrio ou tortuoso na repressão da ditadura e na própria luta armada para nos livrar da ditadura.

O horror, tal qual a dor,é único e intransferível. E é isso que eu conto aqui. Perdoai-me se a rudeza choca, faz lacrimejar ou escandaliza: nada foi obra minha. Sou apenas o narrador contando o que sentiu ou viveu.

Por ser um sobrevivente e seguir vivo, retive também as ironias capazes de fazer rir ou até vislumbrar beleza e alegria em meio à sordidez, nos porões do regime ditatorial ou no acesso ao perigo, na nossa aventuresca resistência à própria ditadura.

Elas fazem o contraponto suave dos tempos duros. E ajudam a marcar a simulação de uma ditadura que se autodenominava “democrática” e fazia eleições para escolher senadores, deputados e vereadores, num permanente exercício do simulacro.

Minhas experiências de prisioneiro exemplificam o caminho progressivo da ditadura. A primeira prisão, branda e breve, ainda em 1964. Três anos depois, o tom já foi duro e o encarceramento longo, mas não houve tortura. A terceira, em 1969, em pleno ápice do regime, no início da etapa triunfal dos porões, após o Ato Institucional nº 5, em que a preocupação principal era torturar.

Este é um relato de experiências e sensações pessoais, mas - ao não haver nele um olhar individual - tentei torná-lo uma documentação viva a retratar os anos de ferro, brasa e cinza.


INTRODUÇÃO

Não hás de ver, Marília,
o medo escrito,
O medo perturbado
Que infunde o vil delito.

TOMÁS ANTÔNIO GONZAGA,

Poeta e “inconfidente” mineiro,
Preso, torturado e condenado
Ao degredo na África.


PRIMEIRAS VISÕES

Os beijos que te dou tu não sabes de onde vêm. São teus, do teu corpo e da tua alma, do mais profundo de ti, sim, mas vêm daquele meu ego morto que só contigo renasceu. Pouco me ri e muito mais sofri neste tempo todo. São trinta anos que esperei para escrever e contar. Lutei com a necessidade de dizer e a absoluta impossibilidade de escrever. A cada dia adiei o que iria escrever ontem. A idéia vinha à memória, mas, logo, logo, se esvaía naquele cansaço imenso que me fazia deixar tudo para amanhã e jamais recomeçar. Tornei-me um esquizofrênico da memória ou de mim mesmo: o que queria e desejava agora me impacientava em seguida e me cansava e aborrecia logo adiante.

Tendo tudo para contar, sempre quis esquecer. Porque lembrar o major torturador, os interrogatórios dias e noites adentro? Por que trazer de volta aquele sabor metálico do choque elétrico na gengiva, que me ficou na boca meses a fio? Por que lembrar a prisão em Brasília ou no Rio de Janeiro ou nos quartéis de Juiz de Fora? Para que recordar aquelas reuniões clandestinas, intermináveis, em que debatíamos na ansiedade e nos aproximávamos uns aos outros como irmãos que brigam, se irritam e se odeiam na fraternidade do perigo? Para que recordar a pressa urgente das ações armadas, em que a audácia e a rapidez eram a nossa única arma imbatível para compensar a improvisação e a inferioridade numérica e tecnológica? Para que pensar na nossa entrega e aventureirismo? Para que lembrar a brutalidade da ditadura - agora velha e carcomida - se, na época, nós mesmos só fomos admitir e comprovar que era brutal, e absolutamente boçal, na dor do choque elétrico nos perfurando o corpo?

Para que recordar o seqüestro do embaixador dos Estados Unidos, que nos libertou da prisão ou da morte, se a partir daí - nesse triunfo concreto e frágil - a violência da ditadura se acelerou e o pais inteiro terminou aprisionado na imundice açucarada do seu ventre? Para que recordar o México do exílio - que significou a libertação e a liberdade - se de lá eu saí e fui viver o horror da Argentina dos anos 70, logo outra vez a prisão no Uruguai, com requintes de uma crueldade que nem sequer conheci no quartel da rua Barão de Mesquita, no Rio, na própria pele ou nos gritos daquelas duas mulheres torturadas, que se expandiam na madrugada, como se o inferno falasse?

Agora, quando roço tua pele, e no silêncio te sinto estremecer, me pergunto para que invocar o exílio, aqueles longos dez anos que fomos os “banidos”, algo extravagante que nos obrigava a vagar pelo mundo sem jamais poder voltar à pátria e ouvir teus sussurros ou descobrir teus olhos verdes-azuis ao sol do lugar onde nasci.

Eu me lembro tanto de tanto ou de tudo que, talvez por isso, tentei esquecer. Quando te amo, este amor enfurecido de beijos e abraços ocupa todo o espaço da memória e, só então, vivo tranqüilo e em paz. Sim, minha amada, o que os meus olhos viram às vezes sinto vontade de cegar.

Esquecer? Impossível, pois o que eu vi caiu também sobre mim, e o corpo ou a alma sofridos não podem evitar que a mente esqueça ou que a mente lembre. Sou um demente escravo da mente.

Rima? Rima, sim, e até pode ser uma rima, mas não é uma solução. A única solução é não esquecer.

E por não esquecer te conto, minha amada. Como um grito te conto. Ouve e lê.

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